Arquivo para download: De Bactriana e as margens de Urmi à montanha e o ocaso: como introdução à leitura de Assim falou Zaratustra", por Mónica B. Cragnolini
O camelo, a figura do homem decadente, mostra claramente que o “homem é um animal que venera” e que, além disso, necessita humilhar-se para suportar a vida. A vida se vive e se vê de baixo, de joelhos, quando está baseada em um fundamento divino (entendendo por Deus, aqui, tanto os deveres sagrados quanto os laicos, os costumes burgueses e as pequenas comodidades, a linguagem e suas armadilhas, as pirâmides de conceitos e seus sistemas, as filosofias do fundamento e seus substitutos, etc.). O camelo venerador caminha pelo deserto, porque “no deserto habitaram desde sempre os verazes (die Wahrhaftigen), os espíritos livres, como senhores do deserto”. O deserto é o lugar do niilismo, do vazio de sentido (“Ai de quem abriga desertos!”) mas, por sua vez, é o espaço de solidão que permite as transformações, na medida em que representa o oposto da “praça pública”. A imagem do homem que vai ao deserto sem seus deuses é a mesma do filósofo peregrino que abandonou a cátedra precocemente, cerceando seus vínculos institucionais, e que demonstra ter tido uma longa errância em gelo e desertos. Passar pelo deserto: lançar-se até o fundo do niilismo, da carência de sentido, apalpá-la e respirá-la com o próprio corpo, para poder indicar as possibilidades de sair daí.
Quem pode iniciar esta busca de caminhos é o leão, o espírito livre do niilismo integral, que deve assumir a morte de Deus como a morte do fundamento estruturador da metafísica, da moral e da religião. O leão-espírito livre, que busca “olhar o outro lado de todas as medalhas” e, nesse sentido, inaugura a “filosofia da suspeita” com respeito aos grandes ideais e valores, leva a cabo a tarefa de “desmascarar” os mesmos. Para desmascarar é necessária a força do leão, seu rugido de ruptura com tudo o que aprisiona o indivíduo aos pesados deveres ante os quais é necessário ajoelhar-se. Mas a mera ruptura não basta: é necessária a força que permite criar, força da qual carece o leão, empenhado no “não”, na negação de suas cadeias. Do mesmo modo, o espírito livre corre o perigo constante desta negação que, por sua dureza, pode chegar a converter-se na busca de uma nova fé “talvez mais estreita”, em que possa se apoiar. Porque aquilo que espreita o espírito livre é precisamente essa necessidade humana, demasiado humana, de descansar em algum princípio, em algum fundamento, com o consequente perigo de que esse princípio torne a transformar-se em princípio último e fundamento seguro como era Deus, a moral ou os bons costumes. Por isso, a negação constante é impossível sem a criação.
Daí a criança: novo começo, possibilidade de criação, possibilidade de assumir o mundo como jogo. Possibilidade, além do niilismo integral do espírito livre e de sua filosofia de martelo, do “niilismo futuro” e do filósofo artista, o homem do perspectivismo. Para a criança, nenhum jogo é o último ou verdadeiro para além do momento e das circunstâncias em que o está jogando. Para o filósofo artista, nenhuma perspectiva é a última, todas representam possibilidades de criação, conjunção-disjunção momentânea de forças, nas quais não existe nenhum “superjogador” que dite as regras aprioristicamente, nem nenhum significado prévio ao jogo mesmo. O significado do jogo surge no jogo em questão, não existe um “outro” que justifique e desvele a “verdade” de suas significações (morto Deus, desaparece a fonte última dos sentidos possíveis, o Sentido dos Sentidos).
Este “operar” da criança se pensa como similar à arte, na medida em que a arte, como manifestação da Wille zur Macht, não busca sentidos fora de si, mas gera suas próprias significações. A arte é o jogo por excelência, jogo de estruturação-desestruturação das belas formas, recônditas harmonias e estranhas figuras. A arte é a manifestação do operar mesmo da vontade de poder, do jogo de forças que se acham em constante processo de aglutinação-desagregação, gerando perspectivas sempre novas.
O filósofo-artista-criança cria valores outorgando um sentido (provisório) ao nihil da falta de “para quê” (télos), de causa e de ordem do mundo, nihil que não pode ser vivido sem mais pelo homem, que necessita, assim, “logicizar”, falsificar. As criações de conceitos (o jogo de criança) são ficções: perspectivas que se assumem como tais, uma vez erradicada a ideia de verdade última. As ficções se diferenciam das ideias metafísicas que movem a vida do camelo na medida em que se assumem como falsificações, “esquemas-mapas” que são necessários traçar sobre o caos para não se perder no abismo somente.
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